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Em 1938, Mies van der Rohe, abandona a Alemanha Nazi rumo à América. A história é conhecida e todos sabemos a enorme influência que os trabalhos produzidos por Mies, naquele continente, exerceram na Arquitectura. A par com Le Corbusier, é possivelmente um do arquitectos mais estudados do século XX, tendo-se assistido nas últimas décadas a um crescente interesse pela sua obra, talvez pela sua obsessão pela procura de uma verdade arquitectónica, negando tudo o que poderia ser considerado supérfluo, a sua capacidade em não abrir precedentes, a espacialidade criada, o rigor construtivo, a rejeição do compromisso e da concessão, culminando no aforismo less is more.
     O que normalmente não é muito discutido, é o que andou Mies van der Rohe a fazer no período compreendido entre 1933 – ano da ascensão ao poder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, vulgo Partido Nazi – e 1938, ano em que rumou para a América. Durante esse período, vários foram os acontecimentos marcantes na sua vida que poderiam ter mudado o curso da história, na maneira como hoje o olhamos, no que a sua obra representa bem como no seu legado.
     Mies sempre se proclamou apolítico. Olhando para a sua obra, percebe-se que a mesma contém poucos sinais de preocupações políticas ou mesmo sociais. Vive de si própria, como se o que a rodeia apenas ali estivesse para dar ainda mais sentido à sua criação, reforçando assim o seu sentido de modernidade. É, dessa maneira,  independente e autónoma. Talvez por isso a admiramos tanto. Reconhecemos nela as características da intemporalidade. Mies emergiu numa época de profundas transformações sociais. Depois de uma Guerra Mundial e uma Revolução Russa, o mapa da Europa de 1918 mostra um continente transformado, onde os Impérios deram lugar a países e confederações, onde o conflito social e a obra de Karl Marx abrem portas para aquilo que caracteriza hoje a Europa, o Estado Social. A Bauhaus surge exactamente neste contexto. Após a queda do Império Alemão, é fundada em 1919 por Walter Gropius na recente República de Weimar a Bauhaus, que curiosamente nos seus primeiros anos de existência não possuía um departamento de arquitectura. Proclamando uma “arte total”, a Bauhaus dedicou-se a redesenhar tudo aquilo que fazia parte do universo até então conhecido, dentro de um espírito moderno e segundo convicções, que embora discutíveis, estavam muito próximas dos ideais defendidos pela Revolução Russa, razão pela qual foi fechada várias vezes.
     Em 1930, Gropius convida Mies para chefiar a Bauhaus. Independentemente de já ser considerado um mestre, é curioso constatar que, tendo em conta os paradigmas acima descritos, Mies deveria ser possivelmente o arquitecto menos representativo do espírito da Bauhaus para a liderar. O processo de prefabricação/standardização da construção nunca estiveram na sua agenda como uma componente social. Uma das explicações para tal convite poderá residir no facto de Gropius ter pensado que aos olhos de Alfred Rosenberg – arquitecto e nazi – Mies se apresentava como um homem moderado e neutral. Ainda assim, e após várias tentativas por parte de Mies em manter a Bauhaus aberta – Rosenberg exigia que Wassily Kandinsky e Ludwig Karl Hilberseimer fossem dispensados da escola –, a mesma encerrou em Agosto de 1933. Nesse mês, Mies enviou uma nota aos seus alunos, onde afirmava que caso a Bauhaus fosse financeiramente viável, ele teria aceite as condições impostas pelos nazis. Sem trabalho e com a sua escola fechada, Mies poderia ter seguido o caminho dos seus contemporâneos e abandonar a Alemanha. Optou por ficar e nesse mesmo ano, 1933, participou e perdeu o concurso para a construção do novo Reichbank.
     Para o concurso, organizado pelo Ministério das Finanças, foram convidados cerca de 30 arquitectos, desde os mais conservadores, como Blunck, Kreis e Tessenow, aos mais modernos como Gropius, Richard Döcker, Otto Haesler e Mies van der Rohe1. O Júri também estava dividido entre a ala mais conservadora e a mais moderna. Curiosamente, o recentemente eleito Partido Nazi não excluiu deste concurso arquitectos modernos, nem tão pouco socialistas. Os únicos excluídos foram mesmo os judeus, razão pela qual Erich Mendelsohn não foi convidado a participar2. E foi exactamente este arquitecto e a sua obra de 1928-29 para os Armazéns Schoken, a maior fonte de inspiração da proposta apresentada por Mies, evidente na composição da fachada3. Mies apresentou um projecto radicalmente oposto ao que nos tinha habituado, onde a simetria estava latente em cada traço. Foi um dos dez escolhidos para uma segunda fase, sendo recusado por Hitler, segundo o argumento de não ser um edifício de Estado mas sim um banal edifício de escritórios4.
     Passados dois anos de pouca produtividade, Mies participou no concurso para o Pavilhão Alemão da Feira Mundial de Bruxelas de 1935. É neste projecto e após algumas tentativas goradas, que Mies joga tudo por tudo. O edifício é-nos apresentado com duas bandeiras nazis e águia imperial a coroar o centro da entrada. Nas paredes existem suásticas e no seu interior pode-se ler Deutsches Reich. Uma águia imperial coroa o centro da sala principal do pavilhão. Para quem nos habitou a não fazer concessões e se recusou alguns anos antes a colocar qualquer símbolo alemão nas paredes do Pavilhão de Barcelona (1929)5, é de facto surpreendente o uso de tal linguagem. Impressionante, também, é saber que para poder participar neste concurso, Mies teve que se fazer membro de um instituto chamado Reichskulturkammer, criado em 1933 pelo então ministro da Propaganda Josef Goebbels, sendo um dos requisitos de entrada a constituição de prova de ser de “raça pura”6.
     Mies não ganhou o concurso. Hitler, tendo participado ele próprio do júri, diz-se, terá pisado a maqueta do projecto7. Descontente com as propostas apresentadas e tendo noção que se iria expor aos olhos do mundo, decide que a Alemanha não irá estar representada na Feira de Bruxelas. Foi o último golpe para as aspirações de Mies em construir os seus ideais na sua terra natal. O acaso, mais uma vez, ditou que Hitler e Speer se encontrassem. O resto todos sabemos.
     E assim, em 1935, Mies, vê-se uma vez mais, sem trabalho, imigrando em 1938 para os EUA. Em 1964, no Simpósium de Arquitectura Moderna, Sibyl Maholy-Nagy acusou Mies de ser um traidor para “todos nós”8. Anos mais tarde após a sua chegada à América, foi convidado a participar numa exposição sobre a Bauhaus. Recusou, alegando nada dever à Bauhaus9. Há quem defenda que Mies não se quis expor perante o seu passado alemão. Na verdade, Mies não é o único arquitecto do período moderno a colaborar com regimes autoritários e totalitários. Le Corbusier trabalhou para o regime de Vichy, Giuseppe Terragni com o regime da Itália fascista. Gropius, submeteu em 1934 ao Presidente nazi da Prussia Oriental, um modelo de desenvolvimento regional e de cidade10. Em 1936, o mesmo Gropius escreveu a Hönig afirmando: “Como tenho sido até agora, também no futuro me manterei leal; vejo a minha missão em Harvard como sendo a de servir a cultura alemã”11. Muitos tentaram explorar a aparente falta de rumo do regime Nazi, seguros de que, sem esse apoio, perderiam o patronato.
     Em 2008, Daniel Libeskind declarou publicamente que os arquitectos deveriam pensar muito bem antes de aceitarem encomendas do governo chinês, afirmando: “Eu não trabalho para regimes totalitários”. Foi imediatamente criticado pelos seus colegas, alegando estes, que Hong Kong, onde Libeskind tinha uma obra desde 2002 e actualmente construída, é uma Região Administrativa Especial da República Popular da China. Independentemente de se poder considerar uma gafe – Libeskind nunca se redimiu das suas afirmações –, na verdade, a mesma relança um debate já longo na História. Devemos ou não, enquanto arquitectos, aceitar encomendas vindas de regimes opressivos e com pouco respeito pelos direitos humanos? Ou, ao invés, devemos socorrer-nos dos nossos princípios éticos e morais, coibindo-nos de aceitar tais encomendas? Talvez não exista uma resposta universal para estas questões, mas cada vez mais construímos na China, Dubai, Irão, Emirados Árabes Unidos, Sudão.
     É verdade que existe uma necessidade visceral para a materialização das nossas ideias enquanto arquitectos. É verdade também, que devemos estar atentos às oportunidades sob pena destas não voltarem; olhamo-las como uma hipótese de nos afirmarmos. Contudo, deveríamos talvez reflectir sobre qual o preço a pagar por essa mesma concretização. Talvez, como Mies em 1936, acreditemos que as nossas ideias são muito mais importantes do que qualquer regime político e social. Acreditamos ser esse o nosso legado. Acreditamos que quebraremos barreiras instituídas. Raramente pensamos que a nossa acção poderá também servir para legitimar determinado tipo de regime ou de política, seja ela nacional ou mundial. Aceitamos encomendas públicas directamente, indignando-nos depois, quando essa mesma encomenda pública é entregue a alguém cujas credenciais arquitectónicas consideramos menores. Pirateamos software e negamos aos colaboradores a oportunidade de fazerem parte de uma estrutura. Esses estão a prazo, como se as ideias e capacidade de desenvolver projectos fosse algo temporalmente limitado. Achamos que os mesmos são um encargo e um fardo na nossa pretensa subida ao Olimpo. Temos uma posição pública afirmada pelo silêncio. Acreditamos na capacidade de os nossos edifícios e de os nossos projectos poderem vir a melhorar o Mundo. Os nossos edifícios e não aquilo que somos como indivíduos. Não naquilo em que acreditamos, em como nos comportamos nem tão pouco os princípios que defendemos. Temos um ego do tamanho do mundo. Achamos que os edifícios se sobrepõem aos seus autores. Somos políticos na dimensão popular do termo. Mentimos descaradamente a nós próprios, na certeza porém de materializarmos o nosso ego.
     Depois, há quem, sem pretensões e com o saber conquistado pela humildade, trilhe o seu caminho. Despretensiosamente e nunca olhando para o seu umbigo, faz mais por todos nós do que muitas palestras e seminários. Sem almejar a ser capa de revista ou a pavonear-se pelos corredores do estrelato, nunca comprometendo aquele que é o seu bem mais sagrado: a capacidade de pensar e de questionar. Sem medos nem receios que possam vir a comprometer o seu trabalho. Para ele a Vida vale mais do que a afirmação pessoal, porque a Vida é o nosso maior legado. Todos o entendem. Poucos o seguem. Não traz dinheiro, fama, nem mais encomenda. Pertence a tempos passados, dizem.
     Nuno Teotónio Pereira foi talvez aquele que em Portugal, de uma maneira simples e humilde, mais fez pela Arquitectura. Hoje, pouco olhamos para o seu legado. Aparentemente, é datado. Esquecemo-nos de que, se hoje,  temos a possibilidade de exercer a profissão, muito lhe devemos. Pelas suas posições públicas e constante participação cívica. Sem medos, sem receios, sem concessões.
     Encomenda nunca lhe faltou. Respeito também não.
     Teria sido interessante ouvir mais oradores a abordar o tema “política e arquitectura” no seminário internacional que se realizou em Lisboa12 no mês de Janeiro. Infelizmente, o ego do saber e a necessidade de protagonismo individual falaram mais alto.|


1 Richard Pommer. Mies van der Rohe and the Politics Ideology of the Modern Movement in Architecture. in Franz Schulze (ed.). Mies van der Rohe: Critical Essays. New York : The Museum of Modern Art, 1989, p. 119.

2 Ibid.

3 Ibid., p. 120.

4 Celina R. Welch. Mies van der Rohe’s Compromise with the Nazis. Wiss. Z. Hochsch. Archit. Bauwes. – A. –Weimar. Vol. 39 (1993), p. 104.

5 Franz Schulze. Mies van der Rohe: una biografia crítica. [S.l.] : Hermann Blume, 1986, p. 206.

6 Celina R. Welch. Op. cit., p. 108; Franz Schulze. Op. cit., p. 205.

7 Celina R. Welch. Op. cit., p. 107.

8 Ibid.; Richard Pommer. Op. cit., p. 130.

9 Celina R. Welch. Op. cit., p. 108.

10 Richard Pommer. Op. cit., p. 130.

11 Ibid., p. 129.

12 Conferência Internacional Arquitectura [in] ]out[ política, organizada pela II Trienal de Arquitectura de Lisboa e comissariada por Cláudia Taborda e José Capela. Decorreu entre 15 e 16 de Janeiro, na Aula Magna, em Lisboa. Segundo os Comissários, a Conferência surgiu “como uma oportunidade para reflectir e debater a arquitectura como instrumento orientador de processos democráticos e como signo temporal e espacial das suas potencialidades”. Pretendeu-se ainda que fossem discutidos “conceitos de forma transdisciplinar e interdependente, num enquadramento centrado em quatro vectores: política, cidadania, dispositivo e futuro”. Através destes, seria “analisada a operatividade das práticas arquitectónicas enquanto manifesto, lugar, factualidade e função”. A Conferência contou com quatro painéis: “Política” – Andrea Cavalletti, Jeffrey Inaba, Markus Miessen, Ricardo Carvalho; “Cidadania” – Reinhold Martin, Jorge Mario Jáuregui, Yona Friedman, José António Bandeirinha; “Dispositivo” – Monique Eleb, Jonathan Hill, Santiago Cirugeda, Pier Vittorio Aureli; e “Futuro” – Adolfo Vásquez Rocca, Sarah Whiting, Alain Guiheux, Philippe Rahm; moderados por André Tavares, Joaquim Moreno, Jorge Carvalho e Pedro Bandeira, respectivamente.


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